Sicredi Novos Horizontes Itaí
Carlinhos Barreiros

MAJOR TOM

Corajoso e bom de braço, meteu-se em perrengues homéricos, o que só ajudou a formatar a lenda que já crescia em torno de seu nome.

Ayrton Antonio Alvares
Ayrton Antonio Alvares

A semana começou com uma má notícia: o falecimento, em Nova Yorque, do amigo Ayrton Antonio Alvares, vitimado por um câncer de fígado em 28 de setembro que lhe abreviou os dias. Como parece ser rotina para mim, sempre que morre um amigo, chovia.

Fiquei sabendo por uma rede social, logo cedo, num post do Theo Motta, de Marília. Não costumo ligar o PC quando me levanto, mas como precisava ir ao Correio resolvi deixar ligado. Foi aí que, andando de lá pra cá, dei de cara com a notícia funesta.

De início não me situei no pedaço, zanzando fora da casinha. “Tom”? me perguntei em dúvida. “Que Tom”? – Tinha me esquecido completamente que Ayrton, quando mudou-se para os States, americanizou o nome, como milhares de estrangeiros fazem quando chegam lá: de Ayrton Lourenço (do pai, Toniquinho), virou Tom Lawrence, numa fusão de consoantes e vogais que acabou ficando bem bacana no idioma do Tio Sam.

Já lá embaixo, na cidade, deparei-me com Nelsinho Motta, meio atarantado em meio à chuva que os céus despejavam. Também ficara sabendo da má nova, e, bolado, parecia nem acreditar. Contou-me que Ayrton estava com o câncer há um bom tempo, que tomava comprimidos caríssimos contra a doença e que nada indicava um desenlace súbito assim. Inclusive relembramos a notícia que circulou pela cidade, no meio do ano, que ele e outros  amigos teriam sido fotografados na ensolarada Espanha, numa boa, nessa época. Como nunca vi tal foto, deixo aqui somente o que fiquei sabendo pelos outros, nem mesmo sei se ela existe.    

Conheci Tom há muito tempo atrás, quando ele ainda era um garoto, lá pelos seus quinze ou dezesseis anos, na década de 60 do século passado. Íamos juntos com outros amigos aos cines Central e Jardim, frequentávamos ocasionalmente o Bar Royal, do seu Rodolfo, anexo ao cinema e ficávamos fazendo hora na praça, de noite, em frente ao cinema ou na Radiação (sistema de som tocado por moleques onde eu trabalhava ocasionalmente). Nossa diferença de idade era de uns 5 ou 6 anos e me lembro que Tom ficou bastante abalado quando do falecimento de sua mãe, a professora Doralice, também de câncer. Depois da morte da mãe - um doce de pessoa - Tom resolveu tirar um ano sabático por luto. Não saía mais de casa. Nunca mais foi ao cinema ou ao bar. Lembro que meu pai, nessa época, comprava umas revistas policiais chamadas X-9 e Detetive que continham apenas histórias de crimes, coisas macabras, serial-killers e assassinatos medonhos. Pois Tom ia em casa e saía com pilhas delas nos braços – meu pai tinha coleção - se enfurnava em casa e só lia isso. Demorou muito tempo para que ele se recuperasse da perda da mãe. E quando deu as caras nas ruas de novo era um garoto completamente diferente.

Logo depois mudei-me para São Paulo e a Vida encarregou-se de separar-nos. Mas ainda o via nas férias; falava-se muito por aqui de suas proezas na época, de seu jeito destemido de ser e de sua mania de não fugir da raia quando o motivo era briga. Brigava-se muito naquele tempo em Piraju, a rapaziada, por território ou mulher, mas todo mundo tinha medo de enfrentar o “Ayrton do Toniquinho”. Corajoso e bom de braço, meteu-se em perrengues homéricos, o que só ajudou a formatar a lenda que já crescia em torno de seu nome. Para ilustrar, basta lembrar que Tom foi o primeiro rapaz de Piraju a pilotar uma moto possante, 400 cilindradas. À época, só James Dean tinha feito isso no cinema, no clássico “Juventude Transviada”. Ou Marlon Brando, em “O Selvagem da Motocicleta”, que bem poderia ter sido um apelido para o nosso Tom. Pouco afeito às convenções e ao católico, familiar e hipócrita way of life pirajuense, Tom, realmente, cagava e andava para o que pudessem dizer ou pensar dele. Foi assim a vida toda, ou, pelo menos, depois da fase X-9/Detetive, quando emergiu da sua crisálida de dor.

Numa das últimas vezes que estivemos juntos, no quiosque do Dirceu, no posto do Eduardo Martignoni, estava radiante. Tomamos várias cervejas junto com outros amigos e colocamos o papo em dia. Ele fez questão de levar para os States alguns exemplares de meu livro (que não conhecia) e em troca me deu outro, um livro de Arte, de autoria do seu sogro italiano, que se não me falha a memória foi curador em um museu de Veneza ou Florença.

Nessa mesma ocasião, debochando de uma madame local com passado discutível que fugira apavorada ao avistá-lo no quiosque por causa de sua “fama de mau” me falou que “detestava esse tipo de gente fingida” e que se dava muito melhor com “gente falada”. Imediatamente identifiquei-me no quesito “gente falada” e demos boas risadas juntos, enquanto o sol se punha na Brasilinha e a gente não-falada de Piraju se preparava para ir à missa garantir seu lugarzinho junto aos pés do Criador no pós-mortem.

Assim era Tom. Major Tom, como na música, agora que resolvi promovê-lo depois de morto. Que as lembranças persistam que e a terra lhe seja leve.