Sicredi Novos Horizontes Itaí
Carlinhos Barreiros

A Sucuri da bomba

Por Carlinhos Barreiros

Cenário: Piraju, anos 60 do século passado

Livro 1: A cidade e o pescador

Cidadezinha atrasada e pequena encravada às margens do rio Paranapanema, no estado de São Paulo, com menos de quinze mil habitantes, Piraju vivia, no começo dos anos 60 do século passado, uma explosão de vitalidade e modernismo. O prefeito, Cláudio Dardes, já iniciara e preparava a instalação de construções variadas e seus entornos para a aguardada feira de exposição do café e seus derivados, em terreno às margens do rio, que pretendia ser anual, depois de pronta. As expectativas que cercam a novidade a ser inaugurada atiçam e estimulam a imaginação dos habitantes do local, sempre prontos para uma boca livre e diversão. O café, à época, na região, era o principal produto nas lavouras das fazendas regionais.

Em meio a esse burburinho de coisas novas vivia Pedro, funcionário da bomba e pescador nas horas vagas. Casado com Helena e pai de três crianças, morava ali mesmo perto do local de seu trabalho, num pasto descampado, em ranchinho humilde e meio desmoronado que herdara do pai. A bomba, que apesar do nome não tinha nada de artefato bélico na época em que transcorrem os fatos aqui narrados, era a responsável pela distribuição de água na cidade. Comandada com mão de ferro pelo temível gerente, um tal de João Barreiros, vivia com o motor quebrando, obrigando assim os moradores de Piraju a pegar água nas inúmeras nascentes naturais que a cidade oferecia na época. A mais famosa era a Biquinha, que servia ao Bairro Alto e cercanias quando a bomba pifava e a água acabava. Quando a seca nas torneiras se instalava, filas de donas de casa e suas crianças enchiam as ruas de balde na mão, todos no Caminho da Biquinha, que existe até hoje. A fonte, atualmente, tem sua água proibida para consumo, por excesso de impurezas e outras letalidades advindas do progresso.

Bem, voltemos a Pedro que gostava de pescar e era um bom marido. Às vezes levava junto no bote precário que tinha o filho Reginaldo, de oito anos, moleque sapeca e esperto. Numa dessas saídas, antes de botar o barco n´água, na margem do rio, o pescador notou um estranho rendilhado meio mole espalhando-se no chão feito capa diáfana de algum véu muito fino. Curioso, aproximou-se e pegou o artefato na mão, identificando na mesma hora o que era: resto da troca de pele de alguma cobra, pelo jeito bem grande. Ressabiado, Pedro examina as cercanias, mas não vê nada que possa ser ameaçador. Assim mesmo, resolve não pescar naquela hora. Uma intuição, lá, no fundo, um pressentimento cutucando no peito avisa-lhe para voltar para casa, o que ele acaba fazendo. Sem lambaris naquele dia.

Livro 2: A sucuri da bomba –

Um ano se passou. A feira foi inaugurada, com sucesso, e o povo batizou de FECAPI. Pedro fez mais um filho na mulher, nas horas vagas entre o trabalho na bomba e as pescarias: um bebê lindo e rosado, com covinhas nas faces e nos dedos, que o casal batizou de Maria do Rosário. A lembrança da pele morta da cobra foi obliterada por um monte de coisas menores do dia a dia, como acontece com todo mundo. A vida seguia tranquila e João Barreiros, felizmente, pouco aparecia na bomba, que agora engasgava bem menos.

Domingo de sol. Pedro tira o barco do barracão anexo à casa e resolve pescar. Pensa em levar junto os dois filhos maiores, Régis e Reginaldo, mas desiste. Está mesmo a fim de, no meio do rio, com o barco parado, tomar umas três ou quatro latinhas que carrega na caixa de isopor. Então parte.

Meio do rio. Ninguém à vista. Sol a pino. Margens salpicadas e cobertas de um verde intenso, brilhante. Pássaros do mato soltam seus pios nas redondezas e um urutu emite seu longo trinado lúgubre. Tudo parado, inclusive o barco de Pedro. Nuvenzinhas etéreas e branquinhas, céleres, movimentam-se na brisa que deve existir lá em cima. O ar e o calor pesam aqui em baixo. Pedro deita no barco depois de meia dúzia de Brahmas e peixe nenhum. Com a cabeça na proa, olhos semicerrados, observa o movimento modorrento do Paranapanema. E nota, distante, uma flutuação nas águas. Uma crista de rio, muito leve, como se as ondas resolvessem ser brincalhonas de repente.

Pedro equilibra-se nos joelhos meio bambos e dá de cara com o riozão. Nada. A borbulha desapareceu. Se é que realmente existiu. Mas o pescador é desconfiado e um aperto no meio do peito lhe assegura que ali tem coisa. Pedro se debruça no barco e quase daria para ver o fundo do rio, se não fosse tão fundo. Quase. As águas ali são profundas, mais de quinze metros e abrigam coisas que é melhor nem conhecer. Pedro aguça o olhar para baixo do bote e sente (mais do que vê) um movimento. Emergente. Alguma coisa está subindo, e depressa.

De repente, a água explode em milhares de borbulhas, gotículas e respingos. Atônito, Pedro se ergue no barco, mas alguma coisa monstruosa aferrou-se ao seu rosto, enfiando longas presas em sua cara. Uma língua bipartida quase lhe entra goela abaixo, enquanto o pescador tenta afastar com as mãos a sucuri gigante que saiu da água e agora quer levá-lo para baixo. Rápido, o veneno começa a agir no organismo de Pedro, que consegue ainda vislumbrar que o monstro é grosso feito um tronco de árvore e deve medir mais de cinco metros, já que metade dele está escondido pelas águas. O pescador luta e resiste, o barco balança muito, mas a cauda da cobra sai da água e se enrosca em seu pescoço. As presas ainda estão enterradas nas suas faces, agora vertendo sangue. O rio tinge-se de vermelho e Pedro, que não enxerga mais nada, desaba. Num rompante, homem e besta caem juntos no rio. Plaft. A água ainda agita-se por alguns instantes, borbulhando, mas logo se acalma. Mais cinco minutos e tudo está em paz novamente, como se nada tivesse acontecido ali. O barco, abandonado, desliza na correnteza. As aves nas margens emudeceram, mas o urutu insiste no seu canto melancólico. O sol vai caindo no horizonte. Em casa, Helena desespera-se pela demora do marido. Agarrada aos três filhos, vigia as margens do Paranapanema, agora quase negras. Reza pela volta de Pedro. Que nunca mais foi visto.

Epílogo: Dias atuais: Iate Clube Piraju

As gêmeas Emília e Emiliana, de quatro anos, sacodem a mão da mãe, estirada numa espreguiçadeira enquanto se bronzeia, toma uma Coca Cola gelada e mal tem tempo para as filhas. As crianças estão excitadas: “Mamãe, mamãe olha o jacaré nadando lá dentro do rio”. Daniela ergue meio corpo e observa as águas. Não vê jacaré algum. Meio distante, a uns cinco metros de distância, uma leve ondulação permeia as águas do Paranapanema. Como se um cardume estivesse nadando ali embaixo. Ao mesmo tempo, Emiliana descobre um tesouro novo nas margens e o exibe na mãozinha, feito um troféu: “Mamãe, mamãe olha o véu verde molhado que eu achei aqui!”

CARLINHOS BARREIROS:

É professor, jornalista e escritor. Atuou em Piraju nos jornais “Folha de Piraju”, “Observador” e “Jornal da Cidade”, sempre como cronista ou crítico de Cinema/Literatura. Publicou o livro de contos “Insânia: O Lado Escuro da Lua” (esgotado). Em 2006, foi o primeiro colocado no Concurso de Poesias, Contos e Crônicas da FAFIP (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Piraju) com o conto “Sade no Sertão”.

Atualmente, revisa os originais de seu livro de contos ainda inédito, “Freak Show”. Mora em Piraju, onde contribui eventualmente com a imprensa local com crônicas/contos e agora valoriza o site farolnoticias.com.br com seus comentários imperdíveis.

Seu ensaio sobre a contracultura em Piraju nos Anos 60 e 70 do século passado: “Eu, Carlinhos Barreiros, drogado e prostituído” foi publicado com sucesso no blogue da USP (Universidade de São Paulo), do jornalista Luciano Maluly, ficando no top dos Mais Lidos por várias semanas.