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Minha herança de matuto

“A sabedoria não ilumina mentes malvadas”.
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Neste momento assustador da vida nacional, em que a maioria dos brasileiros se encontra encabrestada por uma mídia cuja figura de proa é mais assombrosa que as carrancas sombrias que deslizam sobre as águas do Velho Chico, peço vênia para ofertar um cardápio menos carrancudo, mais leve, de maior inspiração, como forma de distrair as mentes que se encontram alugadas ao coronavírus. Refiro-me à obra MINHA HERANÇA DE MATUTO, texto que tirou do anonimato um gênio da poesia, oculto no recesso da caatinga. Trata-se de Leonardo Bastião (Leonardo Pereira Alves, Itapetim, PE, 1944 —), analfabeto, que nasceu e reside até hoje na mesma paragem sertaneja, vale do Pajeú, PE. Mensageiro de uma poesia tão pura quanto a caatinga em que se esconde, Bastião somente adquiriu visibilidade quando um empresário, gigante do ramo eletroeletrônico, tomou para si o encargo de publicizar a vida e obra desse vate, propósito que virou realidade com a publicação do livro intitulado MINHA HERANÇA DE MATUTO. Manso, de índole bondosa, o visual do Bastião (que basta para atestar-lhe a condição de caboclo) contrasta com a cachoeira de poesia e sabedoria que jorra do seu imaginário. Aliás, “A sabedoria não ilumina mentes malvadas”.

Modelado na virtude e nos postulados religiosos, a literatura do Bastião, cândida, pauta-se pelo temor a DEUS e veneração à natureza: No dia da minha morte/A minha vida se encerra/Vou prestar contas a JESUS/O único juiz que não erra/E pagar pelos pecados/Que eu fiz em cima da terra.

O decassílabo a seguir é revelador: o poeta arrelia-se com as pisaduras que a vida lhe decalcou ao lombo: Minha infância não teve proteção/Com dez anos tomei uma aguardente/Vi o tempo correndo em minha frente/E eu preso às cordas da ilusão/Foi aí que se deu um apagão/E eu vi o meu sonho ser apagado/Demorei pra dar fé que estava errado/Acordei depois que estava escuro/E o presente não mostra o meu futuro/E eu não posso viver do meu passado”.

No decassílabo seguinte, de rara verve, opina sobre os que ainda não foram convocados pelo altíssimo: Quando eu olho para o céu vejo uma luz/E naquela não tem transformador/E foi na terra que a vida se criou/Não tem outro poder sem ser JESUS/Os pecados que fiz foi minha cruz/Sou matuto, mas DEUS me deu um guia/E por detrás de uma nuvem de água fria/Vejo um milagre acontecer a qualquer hora/E DEUS só deixou eu viver até agora/Porque alguma coisa de mim ELE queria.

Bastião tem coragem para tudo, menos para falar ao microfone: Em microfone eu não falo/E vou dizer o segredo/É comparar microfone/A um revólver de brinquedo/Que não tem bala no cano/Mas o matuto tem medo

Relativamente à sombra: A sombra que me acompanha/Não é a que me socorre/Se eu andar ela anda/Se eu correr ela corre/É mais feliz do que eu/Não adoece nem morre.

Sendo o Bastião um nativo da hinterlândia brasileira, onde a escola fora, secularmente, regalia da baronagem, evidentemente haveria de ser, como efetivamente o é, identificado civilmente por meio da impressão digital. Desgraçadamente subsistem as razões, tisnadas de infâmia, para esse procedimento vigorar Brasil afora.

Com esses retalhos de poesia cabocla, — excertos de um texto que vale mais que anos de academicismo literário —, consigno o meu preito de admiração a esse poeta, de essência matuta, Bastião, presentemente desassossegado com o cortejo de pessoas, de intelectuais, que acorrem ao seu cochicholo (exíguo, desgracioso e sem conforto), todos empenhados em capturar a verve singular de quem, embora tendo o dom de versejar simples e fácil, é temente a microfone, à caneta e a papel. Se não posso ofertar-lhe a luz do ler e escrever (DEUS, por outro caminho, já o fez) posso adquirir a obra que o imortalizou, modo com que o estaria ajudando financeiramente. “Quando se faz uma oferta com alegria e satisfação é que o dinheiro se torna realmente puro”.

(Texto de JACOB FORTES – avareense morador de Brasília-DF, em 7 de abril de 2020 – Enviado por Carlos Cam Dantas)