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Zélão

Crônicas itaienses 02: Futebol de Criança

Por JL Zélão
Imagem ilustrativa

Houve uma vez, no horário de almoço, saíram da escola Freitas, desceram a avenida e entraram por diversas outras ruas no sentido da Prova do Laço, um garotinho de uns oito anos acompanhado de sua mãe. O menino era forte e feliz, e a mãe, bastante jovem ainda, também se mostrava muito satisfeita com a vida. Antes, haviam passado numa loja e ela comprou para ele uma bola de futebol, daquelas leves, “dente de leite”. O menino ia à frente dela, por vezes ficava para trás, na calçada mesmo, tomando o máximo de cuidado para não ir para a rua, brincando com sua bola nova.

O dia estava atipicamente quente, o ar abafado, atípico pelo fato de ser o final do inverno. Tudo era novidade para o garoto, aquela sensação, aquelas ruas que apesar de passar por elas todos os dias em que ia para a escola, sempre tinha algo novo, e o novo daquele momento específico era sua tão adorada bola. A tocava um pouco mais pra frente e corria até ela, a chutando pelos muros, e era a maior diversão. As vezes a bola subia, e ele inventava uma rápida embaixadinha, meio desajeitada. Começou a suar e era refrescante quando passava debaixo de uma árvore. Desviava de outras pessoas, de obstáculos, e se sentia o melhor do mundo no que estava fazendo. A mãe sempre atrás, sorrindo.

Passaram em frente a uma construção, onde um velho pedreiro estava almoçando à sombra do que futuramente viria a ser uma sala, e ele viu primeiro o menino, depois a mãe dele. Acompanhou com os olhos cansados e deu um sorriso de canto, soturno, quando a bola subiu um pouco e o menino fez uma de suas desajeitadas embaixadinhas. O garoto chegou a sair um pouco à rua, naquela altura da cidade bem menos movimentada do que no centro onde a escola fica, e o velho fixou firmemente seu olhar na mãe do menino. Moça bastante jovem ainda, muito bela, roupas alvas de limpas e o perfume de seu cabelo chegando até ele pelo ar, mesmo o ar estando parado e abafado, perfume de cabelo bem tratado. O garoto também era bem saudável, forte para a idade. Gente rica, pensou o velho, e se apoderou dele uma sensação de urgência e cuidado. Como pode ela não brigar com o menino, que estava a sair pela rua vez ou outra, e se divertindo daquele jeito com aquela bola imbecil? Pelo contrário, ela seguia sorrindo e aparentemente se divertindo com as traquinagens feitas pelo pequeno, e isso, para o velho, tinha algo de errado. Ela deveria ordenar que o garoto parasse! E o menino se divertia tanto com a bola! Criança tem que ser educada com muitos gritos e palmadas, senão corre o risco de estragar elas, pensou ele. Pois o que se lembrava de sua própria infância assim o foi, desde cedo trabalhando para ajudar na casa e levando bofetes por qualquer coisa, nunca estudara e por isso mesmo o uniforme impecável do garoto, apesar dele estar brincando, tinha algo de deslocado pois era para ele estar todo sujo e a mãe gritando por conta disso, pois assim o era com ele e suas roupinhas que mais o faziam parecer um pequeno adulto todo sujo e amarrotado quando criança, e seu pai com a vara pronta para qualquer situação. E muito trabalho, sem tempo para quaisquer brincadeiras tolas. Sentiu inveja daquele menino e a inveja o fez odiá-lo. “Que brincadeira idiota”, pensou, terminando seu almoço e retornando ao trabalho, o mesmo de sua vida inteira, desde quando também era um garoto, e até agora em que havia envelhecido. E em nenhum momento, entre reboques e tijolos, e subindo por andaimes pois era uma casa grande que estavam construindo, ele em silêncio deixou de pensar naquele menino e sua bola. Quando encerrou o dia de trabalho, com o sol se pondo, passou no bar da Luiza pra tomar seu costumeiro trago de conhaque, que fazia desde sua juventude, mas dessa vez permaneceu quieto em seu canto no balcão, relembrando as corridas do menino e as embaixadinhas. E naquela noite sonhou ainda com o menino e sua bola, correndo e chutando em gols imaginários, numa noite mal dormida e agitada.

No dia seguinte, ainda pensava no menino com sua bola, e seu sonho de gols imaginários. Seu trabalho era feito de forma mecânica e impessoal, os demais companheiros da obra como espectros entre poeira e silêncios, e tudo sendo feito no automático, sem pensarem muito, principalmente o velho, como a um mecanismo num todo que funcionava impecavelmente no objetivo da conclusão da obra. Isso facilitava ao velho ficar pensando no jogo do menino. E logo lhe pareceu que ele próprio se sentia como a uma criança jogando bola na rua, com sua linda mãe a acompanhá-lo sorrindo, ele forte e saudável em seu uniforme escolar, chutando para gols imaginários e fazendo embaixadinhas desajeitadas. Todos os próximos dias seriam assim, de muito trabalho, poeira e cansaço, e seu sonho.

Dias se passaram, e numa manhã em que estava indo para a obra, o velho viu na vitrine de uma loja uma bola branca semelhante ao do menino, e uma ideia que até então não havia lhe ocorrido surgiu para ele, causando lágrimas em seus olhos soturnos e cansados. Olhou em volta e percebeu que estava praticamente sozinho na rua, entrou na loja e pediu para comprar a bola, dizendo acanhado, sempre olhando para o chão, que era para seu neto. Quando pegou a bola e saiu à rua, uma alegria indizível apoderou-se dele. Parou por instantes à admirá-la, olhou em volta se alguém estava o vendo, e decidiu guardar em sua mochila, levando sua marmita numa sacola à mão. Das poucas pessoas que estavam numa pracinha próxima, ninguém reparou nem perguntou nada, o que era compreensível, pois quem notaria um senhor de idade guardando um suposto presente para uma criança? Sendo assim, foi para seu trabalho rindo consigo ao sentir a bola dentro de sua mochila, e senti-la causava-lhe uma sensação de realidade, para muito mais de que seus sonhos e devaneios, e estava feliz por saber que tinha a bola consigo. Não sabia direito o por que de tê-la comprado e o por que de estar a levando e ficando tão feliz com isso, sabia que se parecia com a do menino, e isso lhe bastava

Com o passar dos dias, deixou a bola em cima de um sofá na sala de sua casa entulhada, e se contentava em vê-la antes de sair de casa, e quando retornava. Batia ela por vezes no chão, e isso era mais real do que quando sonhava que tinha a bola, antes. E numa manhã quente de domingo, dia que não precisaria ir trabalhar, levantou cedo, pegou a bola e a pôs na mochila, e saiu da cidade em direção do Roncador. Os pássaros cantarolavam alegremente e pareciam brincar, e as árvores balouçavam com uma brisa agradável e vez ou outra o aroma de algumas delas molhadas com orvalho vinha em encontro ao velho. Esplêndida manhã! Caminhou por quase uma hora, sendo encontrado por poucos carros de desconhecidos, que não obstante a isso, buzinavam para ele um e outro, até que ele encontrou na sorte o que ele procurava por intuição: um pasto que levava a um mato fechado cheio de árvores. As sombras dessas árvores pareciam deitar no centro daquele lugar uma penumbra escura que vinha bem a calhar para ele. O velho rompeu pelo pasto, quebrou galhos até atingir o centro daquelas árvores, um lugar fechado e úmido mas, confirmando novamente sua intuição, revelava uma clareira totalmente oculta de quem passasse pela estrada, e era plana, no chão gramado rente como se cuidado por alguém que ali não estava no momento. Olhou para todas as direções e verificou todas as reentrâncias possíveis, para ter certeza que estava absolutamente sozinho e que ninguém o veria mesmo da estrada acima. Certeza confirmada, tirou sua bola da mochila, tirou os sapatos e, tossindo pigarreando, fez num dos extremos da clareira um golzinho com eles. Se distanciou do gol, olhou pra ele, e chutou a bola. Caiu numa gargalhada rouca porque pelo fato da bola ser leve, ela fez uma divertida e louca trajetória, não indo na direção do gol. E aquilo o divertiu muito! Foi buscá-la, era um velho forte que não se cansava fácil, e logo estava correndo com a bola aos pés, procurando ângulos diferentes para chutar ao gol, acertando uma e outra vez, errando bastante e dando gargalhadas. Tentou embaixadinhas também, desajeitadas. Sentiu-se como a uma criancinha em sua brincadeira, sua mãe olhando ao longe e dando risadas diante das suas traquinagens. Brincou assim com sua bola pela manhã inteira, e parou apenas porque o sol do meio-dia estava tinindo de quente, e a fome começava a apertar. Sentou para descansar à sombra de uma árvore, e em meio ao suor escorrendo no rosto, seu sorriso de satisfação permaneceu por alguns minutos estampado nele. Pegou sua bola e a guardou na mochila, calçou seus sapatos e foi embora, satisfeito consigo mesmo.

Á partir daquele, todos os domingos de manhã gostava de ir àquela clareira para brincar com sua bola. Ás vezes sentia vergonha de alguém vê-lo ali, uma vergonha que se tornava verdadeiro pavor, e ele prestava atenção se alguém o via entrar no meio daquele mato fechado, e uma vez na clareira, observava por todos os cantos se não havia alguém rindo dele. Ele precisava relaxar quanto a isso para poder brincar tranquilo, ai entrava num momento em que não se importava mais. E nunca alguém o via ou o escutara enquanto estava em seu local secreto com sua bola, o golzinho feito com seus sapatos, e seus jogos imaginários em solidão. E sempre retornava para a cidade com um sorriso em sua boca desdentada, suor na barba branca, e transbordando satisfação. E quem o via nunca poderia supor o que preenchia de vida aquele singular senhor a sorrir pelas ruas, cantarolando e cumprimentando vivaz a todos que encontrava.

E assim passou-se meses, no anonimato. E nada de novo veio a ocorrer, nada mais diferente. Todos os domingos de manhã brincava com sua bola sozinho na clareira, sem ninguém saber. Não tinha amigos, não tinha familiares. Ninguém dava por falta dele nessas manhãs, ele não tinha pra quem fazer falta e também se sentia completo, sem a necessidade de alguém para compartilhar seu jogo de bola. Mas numa manhã coberta de orvalho em que até os pássaros estavam cantando diferente, saiu de lá resfriado, e quando chegou em sua casa o mal-estar causado por uma febre forte o fez pedir para um vizinho chamar o SAMU, e foi levado até o hospital, vindo a ficar internado. Dois dias depois seu organismo não suportou e morreu, ao lado de pessoas estranhas e indiferentes que se tornavam cada vez mais silhuetas em sua turvada visão. Nos minutos fatais, sorriu com serenidade, sentindo o conforto da ideia de que ele também havia sido criança em sua vida, brincado com sua bola branca em gramas frescas em meio às árvores altas, corrido com ela por sua bela clareira iluminada sempre pelo sol nascente, contemplado por sua mamãe querida.

JL ZÉLÃO

(25/09/23)